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Pais avançam no papel de cuidadores rumo a uma sociedade mais igualitária

Entrevistamos homens de diferentes perfis sobre os desafios e as alegrias da paternidade e como a pandemia impactou o relacionamento entre pais e filhos


Os pais são parte essencial na promoção de um futuro em que meninas e meninos tenham oportunidades e direitos iguais. Eles desempenham um papel importante para fomentar em suas filhas e seus filhos o respeito à diversidade, a importância da empatia, a busca de relacionamentos saudáveis e a valorização do potencial de cada criança.

Se as gerações anteriores entendiam que era papel dos pais proverem os recursos materiais para a família enquanto as mães se encarregavam de cuidar da casa e das crianças, hoje esse conceito está mudando. A sociedade começa reconhecer que os pais não só são responsáveis por cuidar de seus filhos como são perfeitamente capazes de realizar tarefas cotidianas antes associadas exclusivamente às mulheres.

A mudança, porém, é lenta. Muitos pais dispostos a assumir essa responsabilidade ainda são vistos como exceção e encontram obstáculos em uma sociedade que presume que a mãe é a principal cuidadora.

Neste Dia dos Pais, a Plan International Brasil conversou com pais de perfis diversos. Em comum, eles têm o amor a seus filhos, o desejo de vê-los crescendo felizes e saudáveis e a compreensão de que o pai não é somente aquele que gera uma criança ou que paga suas contas, mas aquele que acompanha ativamente cada passo dessa nova geração.

Humberto Baltar e Apolo
Humberto Baltar e Apolo

Honrando a ancestralidade africana, pais pretos formam coletivo
Em um dia comum durante esta quarentena, o professor Humberto Baltar, de 32 anos, se encarrega de alguns dos principais cuidados cotidianos com o filho Apolo, de 1 ano e 4 meses, enquanto sua esposa, a engenheira química Thainá Baltar, de 39, trabalha até 12 horas por dia fora de casa. Humberto, que está em regime de home office, é responsável pelo almoço, banho de sol, brincadeiras e trocas de fralda. Ele luta para que essa divisão de tarefas seja vista com naturalidade.

“Quando dou banho no meu filho, não estou fazendo uma caridade, não estou ‘ajudando’ a minha esposa. Estou paternando, exercendo meu papel de pai. É algo natural, não deveria ser visto como coisa de um cara desconstruidão, avançado, moderno.” É justamente o oposto. Ao lado de outros pais pretos, Humberto tem buscado resgatar os valores da ancestralidade africana, que ensina que a coletividade deve reinar na vida familiar.

“Na ancestralidade africana, não existe divisão de papel por gênero. Existe até o contrário, comunidades matriarcais em que são as mulheres que vão para a caça e os homens cuidam do lar”, afirma Humberto.

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Quando soube que seria pai, Humberto sentiu insegurança por não saber como poderia dar a melhor criação para seu filho. Ele postou em suas redes sociais um pedido para que lhe apresentassem pais pretos presentes. Com a repercussão de seu post, percebeu que não estava sozinho em suas angústias e, da discussão online, surgiu o coletivo Pais Pretos Presentes. Hoje, as conversas se expandiram para quatro grupos de WhatsApp (incluindo também mães pretas e pessoas brancas com filhos pretos), um grupo fechado no Facebook com 8 mil membros e um perfil no Instagram com quase 30 mil seguidores. Antes da pandemia, também foram organizados encontros presenciais. Em um deles, pais e filhos se reuniram em um parque para um piquenique.

A procura e o engajamento no coletivo fizeram Humberto perceber que existia uma carência por um espaço em que homens pretos pudessem se abrir em relação às questões da paternidade e expor suas fragilidades sem medo. “Esse modelo do homem que sai com várias mulheres, um pai ausente que não expressa afeto, que não expressa emoção, que é só força, isso é uma coisa que tentam imprimir na gente desde a nossa infância. Mas a gente descobre que é algo imposto, não faz parte da nossa ancestralidade africana.”

Logo no início do grupo, Humberto se lembra de que um dos membros se abriu sobre uma experiência extremamente dolorosa: um pai havia perdido um bebê de 5 meses e contava que era como se a sociedade não enxergasse seus sentimentos, concentrando-se apenas na mãe. “As pessoas foram se acolhendo. Foi aí eu entendi que não era um grupo de bate-papo, mas uma rede de apoio”, diz Humberto.

Entre outros testemunhos tocantes que foram compartilhados no coletivo está o de um pai cujo filho de 4 anos disse que não queria mais ir para a escola porque um colega disse que não gostava de se sentar perto de um menino preto. Este pai precisou sair de perto do filho para poder chorar. São situações como esta que surgem na vida de um pai preto que fazem com que ele precise desse apoio coletivo, segundo Humberto.

Um dos principais objetivos do grupo é discutir como dar uma educação antirracista para os filhos. Essa estratégia inclui, por exemplo, ensinar que a África é um lugar onde viveram reis e rainhas, que o continente trouxe contribuições valiosas para as ciências, estimular o orgulho da africanidade, a valorização dos traços negros, além de buscar livros e desenhos com protagonistas pretos. “A gente procura principalmente se aquilombar, se respeitar, valorizar quem somos. Essa é a função fundamental do nosso coletivo. Sem isso, fica muito difícil empoderar uma criança”, diz o professor.

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Humberto conta que a quarentena o fez refletir sobre suas prioridades e sobre a importância de dedicar mais tempo ao filho. Por estar trabalhando em casa, o professor pode ver seu filho andar pela primeira vez e essa experiência não tem preço. “Precisou ter esse pesadelo todo para eu ver meu filho aprender a andar. Esse vínculo afetivo está sendo construído e está sendo muito bonito protagonizar isso. São esses princípios que a gente acaba trocando sem querer no coletivo que colaboram para desconstrução de masculinidade tóxica.”

Bruno Vilas Boas, Victor Cesar Vilas Boas e Sol
Bruno Vilas Boas, Victor Cesar Vilas Boas e Sol

Vivendo os desafios da paternidade de forma divertida
O professor Bruno Vilas Boas, de 36 anos, e o artista plástico e analista de projetos Victor Cesar Vilas Boas, de 39, sempre quiseram se casar e ter filhos. Juntos há 14 anos, eles oficializaram a união quando o casamento homoafetivo se tornou possível juridicamente. Há quatro anos, a família ficou completa com a chegada do Sol.

Bruno conta que o casal sabia que a paternidade seria cheia de desafios e que a sociedade não só questionaria o fato de a criança ter dois pais, mas também duvidaria da capacidade de dois homens cuidarem de um filho.

“A gente costuma dizer que só existem três coisas que um homem não consegue fazer em relação a cuidar de um filho. Gerar, parir e amamentar exclusivamente no peito. Com exceção dessas três coisas, todo o resto o homem dá conta de fazer e essa é uma das nossas maiores bandeiras”, diz Bruno. Para o professor, essa ideia de que os homens não são bons cuidadores sobrecarrega as mulheres e isenta os homens da responsabilidade de serem pais de verdade.

O casal lida muito bem com os desafios da paternidade, mas Bruno conta que às vezes ainda sofre ao ouvir certos comentários homofóbicos. “De vez em quando, a gente ouve algumas coisas absurdas que machucam, mas temos muita consciência de que fazemos o nosso melhor e tentamos crescer e evoluir o máximo possível. Ele já fala com muito orgulho que tem dois papais e vamos criá-lo consciente de que ele tem uma família que é fora de um padrão e que tudo bem questionar padrões.”

Como ocorreu com a maioria das famílias, a rotina de Bruno, Victor e Sol mudou radicalmente durante a pandemia. “A gente estava com vários planos de vida, de mudança de casa, mudança profissional e esses planos foram todos parados e invertidos pela pandemia. Começamos a ficar muito tristes e esse não é nosso perfil. O Victor e eu somos muito bem-humorados, leves, descontraídos.”

Foi quando ele começou a gravar vídeos para desabafar sobre os perrengues de ficar em casa com uma criança equilibrando homeschooling, home office e tarefas domésticas. “Comecei a postar no Instagram esses vídeos totalmente sinceros, com um tom mais bem-humorado, leve, cômico, sem nenhuma pretensão de que fosse alcançar muitas pessoas porque eu sabia que estava postando numa rede social que tem muito dessa coisa do filtro da perfeição.”

Muitas pessoas se identificaram e mandaram mensagens carinhosas dizendo que os vídeos faziam muito bem para elas. Foi aí que surgiu o perfil do Instagram Paternidade Divertida. “Isso foi estimulando muito a gente a continuar produzindo e percebemos que existia esse espaço para a verdade na rede social, para ser transparente, honesto, sem filtro e mostrar os desafios de ser pai e também que a nossa família é como qualquer outra que tem carinho e respeito.”

Em um dos vídeos com mais repercussão, Bruno representa um pai desesperado com o ensino à distância fazendo uma homenagem à professora de seu filho, que só pode ser uma santa por conseguir dar conta de ensinar a turma. Outro tema recorrente é a rotina de serviços domésticos. Bruno já gravou vídeo arrumando a gaveta de potes plásticos, limpando seu sofá branco, lavando roupa à mão e apresentando seus panos de prato preferidos. Teve até live lavando a louça.

Por trás do humor dessas cenas da vida real, há uma mensagem importante: a de que o homem também é responsável pelos cuidados da casa. “Esse é um dos maiores desafios porque acho que a grande maioria dos homens não está aberta a essa questão”, diz Bruno. “Infelizmente, existe uma desigualdade muito grande na divisão de tarefas. 90% do meu público é de mulheres e muitas desabafam todos os dias comigo que os maridos não contribuem, não dividem as tarefas.”

Bruno relata que sua infância foi marcada pela violência e que, quando decidiu ser pai, resolveu que proporcionaria uma experiência completamente diferente ao seu filho, exercendo uma paternidade marcada pelo afeto e pelo diálogo. “O principal desafio de pais e mães é criar filhos fortes o suficiente para dar conta da complexidade desse mundo, criativos o suficiente para não só reproduzir o mundo como ele é, mas para renová-lo, e sensíveis para serem empáticos com as pessoas. Essa é a nossa missão como pais aqui em casa.”

Gabriel e Alexandre Ribeiro
Gabriel e Alexandre Ribeiro

Quando a música é mais um elo entre pai e filho
A música faz parte da vida de Gabriel, de 13 anos, desde cedo. Seu pai, o músico Alexandre Ribeiro, de 36, lembra que costumava colocar um diapasão para vibrar perto da barriga da mãe de Gabriel quando ela estava grávida. Tempos depois, Gabriel ficava sempre por perto enquanto o pai estudava durante a faculdade de violão. Esses primeiros contatos com a música se davam em forma de brincadeira.

Quando os pais de Gabriel se separaram, o menino passou a viver só com Alexandre e a acompanhar o pai no trabalho. “Quando eu me separei da mãe dele, não tinha com quem deixá-lo, então ele ia comigo dar aula. Ele tinha 5 ou 6 anos. Via a molecada tocando e queria tocar também”, conta Alexandre, que é professor do programa de educação musical Guri Santa Marcelina.

Gabriel foi aprendendo sozinho, observando o pai e os outros alunos, até que Alexandre começou a ensinar o filho com mais seriedade e cobrar uma rotina de estudos. Desde então, Gabriel já ganhou vários concursos nacionais de violão.

O principal desafio de cuidar do filho sozinho, segundo Alexandre, foi conciliar o trabalho e as tarefas domésticas. Diferentemente de suas colegas de trabalho que eram mães, Alexandre não teve direito a auxílio creche. “Eu tentava colocá-lo em alguma escola que fosse próxima de onde eu estava dando aula. Deixava na escola de manhã e, na hora do meu almoço, buscava e levava para onde eu estava dando aula. Como é um moleque bonzinho, todo mundo gostava dele. Meus chefes até apoiavam e era comum os meus alunos mais velhos irem dar uma força para o Biel durante as aulas”, conta Alexandre.

Outra situação em que Alexandre se sentiu em desvantagem foi quando precisou acompanhar Gabriel em uma cirurgia e não teve a falta abonada por acompanhar o filho, benefício que teria sido concedido a uma mãe.

Alexandre diz que é muito comum as pessoas ficarem surpresas e até admiradas quando descobrem que ele vive sozinho com Gabriel. “Isso é injusto porque já partem do preconceito de que o filho tem que ficar com a mãe, que é obrigação dela. Essa ideia já era para ter sido superada.” Outra reação que costuma irritá-lo é quando sugerem que ele é pai e mãe. “Sou pai e não tenho a menor pretensão de suprir a figura da mãe. Tem amiga que vem me cumprimentar no Dia das Mães. Entendo que não é por maldade, mas é como se menosprezassem a figura do pai, como se dissessem que o pai sozinho não serve para muita coisa.”

Mais recentemente, Alexandre e Gabriel têm se apresentado juntos em um duo de violão e teorba, instrumento de corda parecido com o alaúde do qual Alexandre é um dos principais expoentes no Brasil. “A gente começou a tocar juntos porque uma vez um amigo de infância pediu para tocarmos no casamento dele. Fez um baita sucesso.” No ano passado, o duo de pai e filho se apresentou na série de concertos em comemoração aos 100 Anos da Cripta da Catedral da Sé.