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Caroline Arcari fala da importância da educação sexual para prevenir abuso contra crianças

Em entrevista à Plan, a autora do livro Pipo e Fifi diz que empoderar as meninas e educar os meninos com uma perspectiva não-machista são estratégias essenciais na prevenção da violência sexual

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Caroline Arcari, autora do livro Pipo e Fifi

A escritora e pedagoga Caroline Arcari, especialista em educação sexual, é uma referência na área de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes. Ela é autora do livro Pipo e Fifi, que ensina a crianças conceitos básicos sobre o corpo, privacidade e trocas afetivas de forma simples e lúdica.

Para ela, a sociedade ainda tem um longo caminho a percorrer até a conscientização da importância da educação sexual na formação de crianças e adolescentes. Mas ela observa que acontecimentos recentes envolvendo violência sexual contra crianças e adolescentes têm reacendido a discussão sobre a necessidade da informação para proteção. “É hora de nos articularmos para desconstruirmos os mitos envolvendo essa temática”, afirmou Caroline em entrevista à Plan International Brasil. Leia a seguir a entrevista completa.

 

A educação sexual pode ser uma ferramenta importante na prevenção da violência sexual?

Tão cedo quanto possível, crianças precisam da informação e das ferramentas para identificarem as situações do cotidiano e terem informações para fazerem escolhas, buscarem ajuda e selecionarem valores construídos a partir da reflexão, na relação com o outro e consigo mesmos. Embora o senso comum sugira que a educação sexual intencional precoce conduz ou estimula a experimentação sexual, o Populations Reports, uma publicação do Johns Hopkins Hospital, divulgou um estudo que aponta uma análise encomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de mais de mil relatórios de programas de orientação sexual em todo o mundo. Neste documento, os autores concluíram que a informação e a formação em assuntos sexuais não conduzem ao sexo precoce e, em alguns casos, até o adiam.

Vários documentos oficiais ratificam a importância da educação sexual planejada e intencional desde a primeira infância. A promoção de espaços que privilegiem o desenvolvimento de noções acerca da sexualidade desde a educação infantil é urgente. Primeiro, porque o direito à informação e a uma educação que garanta o desenvolvimento integral da criança está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo, porque essa mesma educação sexual explícita e planejada causa grande impacto na prevenção da violência sexual.

 

A Plan trabalha muito a questão da igualdade de gênero. Você acha que a luta pela igualdade de gênero e contra a violência sexual estão interligadas?

Eu já trabalho com enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes há 15 anos. Infelizmente, casos como o dessa menina de 10 anos acontecem em silêncio, aos montes pelo Brasil, com meninas de 11, 12, 13 anos.

O livro Pipo e Fifi, como muita gente sabe, é uma obra que explica para as crianças o que é violência sexual, como se proteger, como pedir ajuda e como diferenciar toques de afeto de toques abusivos. Mas a prevenção precisa acontecer em muitas dimensões.

Se temos que ficar orientando as crianças a se protegerem de abusadores, como fazemos para evitar que uma sociedade produza tantos predadores sexuais? Diferentemente do que muita gente pensa, nem todo abusador sexual de crianças é doente ou tem algum transtorno de preferência sexual. Algumas pesquisas mostram que entre 10 e 20% das pessoas que abusam de crianças são pedófilos. Pedofilia é o nome de um transtorno de preferência sexual, uma parafilia. Existe até CID (código internacional de doenças) para esse tipo de condição.

Sendo assim, não existe um crime chamado pedofilia na nossa legislação. Pedofilia é nome do transtorno, do desejo, da parafilia. Um pedófilo pode cometer crime ou não. Apenas desejar, sem concretizar esse desejo, não é crime. Desejar e cometer qualquer ato sexual ou libidinoso com crianças, seja com ou sem contato físico, É CRIME.

Portanto, os nomes dos crimes sexuais cometidos contra crianças na legislação brasileira são: estupro de vulnerável, exploração sexual, etc. Desse modo, se 10 a 20% dos abusadores de crianças têm uma condição psiquiátrica, por que os outros 80-90% abusam e, desses, 95% são homens? Isso tem tudo a ver com gênero.

Esses agressores abusam porque podem, porque foram autorizados socialmente, porque têm a sensação de impunidade, porque querem exercer poder sobre alguém, porque entendem que são donos das filhas, sobrinhas, netas, porque foram educados numa perspectiva machista, porque acham que o desejo sexual e a concretização dele estão acima do direito da criança de ter sua dignidade preservada, porque sempre foram autorizados a assediar mulheres, culpabilizar as vítimas e objetificar meninas e mulheres.

O número de estupros e abusos sexuais contra crianças em uma população é resultado de uma equação óbvia: quanto mais machistas os valores de um lugar, maiores são os números de feminicídio, estupro, violência sexual contra crianças, violência doméstica.

Assim, é urgente educarmos meninas para se empoderarem ao mesmo tempo que precisamos educar os meninos numa perspectiva não machista. É preciso tensionarmos a masculinidade vigente, pararmos de exigir que os meninos engulam o choro e sejam agressivos, viris e controladores. Precisamos falar com as crianças e adolescentes não só sobre como se protegerem, mas principalmente com meninos como respeitarem consentimento, como se conectarem com sua sensibilidade, como desenvolverem sua identidade sem a exigência do exercício de poder.

 

Assim, falar sobre gênero é:

  1. Ensinar meninos a respeitarem consentimento;
  2. Empoderar meninas e meninos para que entendam que são donos do próprio corpo e podem e devem dizer não;
  3. Proporcionar uma educação não machista, que não exija que meninos se comportem de forma agressiva, viril, controladora ou competitiva;
  4. Deixar que meninos chorem, expressem seus sentimentos, brinquem de boneca para que aprendam a cuidar, a ter empatia, a sentir a dor do outro;
  5. Empoderar meninas para que tenham voz, para que não se submetam a agressões e violências e procurem ajuda;
  6. Ensinar meninos e meninas que relacionamentos saudáveis não envolvem violência ou exercício de poder;
  7. Ensinar aos meninos que, caso eles sejam abusados sexualmente, que busquem ajuda imediatamente. O mesmo machismo que destrói a vida de meninas e mulheres, também atinge os meninos, que raramente denunciam abusos por vergonha de terem sua masculinidade questionada;
  8. Monitorar e educar crianças e adolescentes para a utilização positiva da internet. O acesso acidental ou intencional à pornografia está acontecendo cada vez mais cedo e tem ensinado a crianças e adolescentes uma performance sexual agressiva, distorcida, com expectativas não realistas, submissão das mulheres e pedofilização do desejo.

 

Na sua avaliação, a sociedade está avançando no sentido de perceber a importância da educação sexual na formação das crianças? Ou ainda temos um longo caminho a ser percorrido?

Temos um longo caminho a ser percorrido sim. Com o cenário político atual, tivemos muitos retrocessos nas políticas públicas que garantiam de alguma forma discussões, reflexões e espaços de diálogo sobre sexualidade. Desde a crise econômica e política que iniciou em meados 2013, a educação sexual se tornou pauta polêmica para se criar um pânico moral generalizado. Juntando isso às novas tecnologias, como o WhatsApp, as informações falsas tomaram conta do senso comum, que passou a atacar novamente a educação sexual e dificultar ainda mais o acesso de crianças e adolescentes a esse direito. Estamos tomando um fôlego e recomeçando um caminho que traçamos lá na década de 1990, com o advento do HIV.

De qualquer forma, percebo que os últimos acontecimentos envolvendo violência sexual contra crianças e adolescentes reacenderam a discussão sobre a necessidade da informação para proteção. É hora de nos articularmos para desconstruirmos os mitos envolvendo essa temática.

 

Na sua opinião, quais são os principais obstáculos que pais e educadores encontram para falar sobre sexualidade com as crianças?

A geração que hoje educa as crianças viveu uma ditadura do silêncio em se tratando de educação sexual. Então, é previsível que mitos ainda sejam reproduzidos. Ainda se pensa que educação sexual erotiza, que incentiva iniciação sexual precoce e que pode tirar a inocência da criança. Então, penso que é preciso que a família, educadoras e educadores se eduquem também. A escola é um local fundamental para garantir que isso aconteça. A família faz parte da comunidade escolar e a responsabilidade da educação sexual precisa ser compartilhada. É preciso reforçar que esse tema não é exclusivo da família, pois sabemos que mais de 75% dos casos de violência sexual contra crianças acontecem dentro de casa. Então, crianças e adolescentes precisam ter acesso a informações de autoproteção, sexualidade, consentimento, e ferramentas de buscar de ajuda em outros espaços educativos.

 

Que conselho você costuma dar para pais que veem a importância da educação sexual, mas se sentem inaptos e constrangidos ao abordar o assunto com seus filhos?

Eu digo que já é um passo importantíssimo a família reconhecer essa importância. Além disso, o importante é se colocar à disposição para ter essas conversas. Não é preciso saber sobre tudo, mas estar disponível para conversar, ir em busca de conhecimento juntamente com os filhos e as filhas, evitar uma postura negativa e de repreensão perante as dúvidas e questões sobre sexualidade. Com a internet, é possível ter acesso a muitos materiais de qualidade para crianças e adolescentes, gratuitos ou para venda: www.pipoefifi.org.br; www.eumeprojeto.com; também as histórias contadas por Fafá Conta (@fafaconta). Caso a família não tenha acesso à internet, é possível acessar serviços como os CREAS ou a própria escola das crianças para emprestar livros e contarem com uma pessoa capacitada para essa orientação.