Honrando a ancestralidade africana, pais pretos formam coletivo
Em um dia comum durante esta quarentena, o professor Humberto Baltar, de 32 anos, se encarrega de alguns dos principais cuidados cotidianos com o filho Apolo, de 1 ano e 4 meses, enquanto sua esposa, a engenheira química Thainá Baltar, de 39, trabalha até 12 horas por dia fora de casa. Humberto, que está em regime de home office, é responsável pelo almoço, banho de sol, brincadeiras e trocas de fralda. Ele luta para que essa divisão de tarefas seja vista com naturalidade.
“Quando dou banho no meu filho, não estou fazendo uma caridade, não estou ‘ajudando’ a minha esposa. Estou paternando, exercendo meu papel de pai. É algo natural, não deveria ser visto como coisa de um cara desconstruidão, avançado, moderno.” É justamente o oposto. Ao lado de outros pais pretos, Humberto tem buscado resgatar os valores da ancestralidade africana, que ensina que a coletividade deve reinar na vida familiar.
“Na ancestralidade africana, não existe divisão de papel por gênero. Existe até o contrário, comunidades matriarcais em que são as mulheres que vão para a caça e os homens cuidam do lar”, afirma Humberto.
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Quando soube que seria pai, Humberto sentiu insegurança por não saber como poderia dar a melhor criação para seu filho. Ele postou em suas redes sociais um pedido para que lhe apresentassem pais pretos presentes. Com a repercussão de seu post, percebeu que não estava sozinho em suas angústias e, da discussão online, surgiu o coletivo Pais Pretos Presentes. Hoje, as conversas se expandiram para quatro grupos de WhatsApp (incluindo também mães pretas e pessoas brancas com filhos pretos), um grupo fechado no Facebook com 8 mil membros e um perfil no Instagram com quase 30 mil seguidores. Antes da pandemia, também foram organizados encontros presenciais. Em um deles, pais e filhos se reuniram em um parque para um piquenique.
A procura e o engajamento no coletivo fizeram Humberto perceber que existia uma carência por um espaço em que homens pretos pudessem se abrir em relação às questões da paternidade e expor suas fragilidades sem medo. “Esse modelo do homem que sai com várias mulheres, um pai ausente que não expressa afeto, que não expressa emoção, que é só força, isso é uma coisa que tentam imprimir na gente desde a nossa infância. Mas a gente descobre que é algo imposto, não faz parte da nossa ancestralidade africana.”
Logo no início do grupo, Humberto se lembra de que um dos membros se abriu sobre uma experiência extremamente dolorosa: um pai havia perdido um bebê de 5 meses e contava que era como se a sociedade não enxergasse seus sentimentos, concentrando-se apenas na mãe. “As pessoas foram se acolhendo. Foi aí eu entendi que não era um grupo de bate-papo, mas uma rede de apoio”, diz Humberto.
Entre outros testemunhos tocantes que foram compartilhados no coletivo está o de um pai cujo filho de 4 anos disse que não queria mais ir para a escola porque um colega disse que não gostava de se sentar perto de um menino preto. Este pai precisou sair de perto do filho para poder chorar. São situações como esta que surgem na vida de um pai preto que fazem com que ele precise desse apoio coletivo, segundo Humberto.
Um dos principais objetivos do grupo é discutir como dar uma educação antirracista para os filhos. Essa estratégia inclui, por exemplo, ensinar que a África é um lugar onde viveram reis e rainhas, que o continente trouxe contribuições valiosas para as ciências, estimular o orgulho da africanidade, a valorização dos traços negros, além de buscar livros e desenhos com protagonistas pretos. “A gente procura principalmente se aquilombar, se respeitar, valorizar quem somos. Essa é a função fundamental do nosso coletivo. Sem isso, fica muito difícil empoderar uma criança”, diz o professor.
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Humberto conta que a quarentena o fez refletir sobre suas prioridades e sobre a importância de dedicar mais tempo ao filho. Por estar trabalhando em casa, o professor pode ver seu filho andar pela primeira vez e essa experiência não tem preço. “Precisou ter esse pesadelo todo para eu ver meu filho aprender a andar. Esse vínculo afetivo está sendo construído e está sendo muito bonito protagonizar isso. São esses princípios que a gente acaba trocando sem querer no coletivo que colaboram para desconstrução de masculinidade tóxica.”